Seja minha vida o padrão naquilo que eu falar e no procedimento, o exemplo à todos levar.

sábado, 21 de dezembro de 2013

CHICO MENDES, ACRE - BRASIL, MUITO MAIS QUE UM SÍMBOLO

Chico Mendes, muito mais que um símbolo
A figura de Chico Mendes reúne todos os elementos que fazem de líderes e defensores de uma causa verdadeiros mitos
Por Cristina Uchôa e Glauco Faria
Passaram-se duas décadas após a morte de Francisco Alves Mendes Filho, o seringueiro mais conhecido como Chico Mendes, e seu nome é reconhecido e lembrado como um dos brasileiros mais importantes do século passado. Para quem observa hoje, no entanto, fica a questão: como alguém que liderava trabalhadores rurais e empreendia uma luta local passou a ter tanta relevância em termos mundiais? Diversos fatores contribuíram para que ele pudesse se tornar um símbolo da defesa da Amazônia. Sua boa relação com a imprensa internacional, em uma época em que o ambientalismo ganhava força em todo o planeta, foi fundamental, mas é claro que essa projeção só foi possível porque a sua luta representava a defesa de ideais que eram comuns a inúmeras pessoas em contextos absolutamente distintos.
Se a batalha contra o desmatamento fazia com que os ambientalistas vissem Chico Mendes com simpatia, seu empenho na organização dos trabalhadores rurais em Xapuri e depois em todo o Acre também atraía a admiração e o respeito de muitos sindicalistas e de pessoas ligadas à esquerda. Dentre eles, aquele que seria presidente da República pelo Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, que foi várias vezes a Xapuri apoiar o amigo. Chico foi sindicalista, articulador de alianças com movimentos sociais e entre os povos da floresta, além de ter dialogado diretamente com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e participado institucionalmente do cenário político como vereador emedebista em Xapuri e, mais tarde, como militante e candidato a vários cargos eletivos pelo PT. Em geral, empreendia sua luta por diversas vias paralelas, o que lhe garantia inserção em muitos nichos, alguns pouco explorados tanto por trabalhadores como pela própria classe política tradicional.
Alfabetizado somente aos 17 anos, Chico tem no professor das primeiras letras uma grande referência na sua formação. Euclides Távora era um comunista que se refugiou na Amazônia, a exemplo de tantos outros que enfrentaram a selva durante os diversos períodos de clandestinidade do Partidão. Ex-integrante da Coluna Prestes, esteve envolvido também com o movimento dos mineiros na Bolívia e participou da Revolução de 1952 junto com os camponeses de lá. Depois de conviver com seringueiros bolivianos por algum tempo, resolveu passar para o lado brasileiro.
É o próprio Chico que fala da influência de Távora em entrevista concedida ao professor aposentado da Universidade Federal do Acre, Pedro Vicente da Costa Sobrinho, cerca de 20 dias antes da sua morte. “Muitos seringueiros que moravam nas proximidades o conheciam. Alguns se deslocavam até sua colocação para conversar. Ele falava do preço da borracha, da exploração dos seringueiros. Isso com muita cautela. Lia as notícias dos jornais e se dizia também seringueiro, só que não sabia cortar seringa”, conta. “Enquanto estava dando as aulas, às vezes ele anotava as coisas, mas em seguida queimava tudo que escrevia”, completa.
Acompanhando os acontecimentos do golpe militar de 1964 pelas rádios internacionais como a BBC de Londres e a Central de Moscou, os seringueiros ouviam as denúncias de prisões e torturas promovidas pelo regime autoritário do Brasil. Foi nesse período, em 1965, antes de sair do Acre para um destino incerto, que Euclides Távora praticamente incumbiu o seringueiro Francisco de uma missão. “Dizia ele: Chico, nós temos pela frente duros anos de repressão, de ditadura, de linha dura, mas fique certo que o movimento de libertação neste país e de qualquer lugar do mundo nunca se acabará. Eu ficava emocionado quando ele colocava aquilo”, contou o líder a Pedro Vicente. “[Távora] falava que o i­deal revolucionário de liberdade iria continuar vivo. A ditadura poderia continuar 15, 18 anos, mas não duraria todo o tempo. O movimento de resistência iria se fortalecer, abrindo brechas para criação de novas associações e sindicatos. Apesar do controle das organizações trabalhistas pelo governo, é lá que você tem que atuar.”
“Àquela altura Chico era uma personagem diferenciada dos líderes locais, pois tinha uma forte formação intelectual e política”, explica o professor Pedro Vicente. Essa bagagem foi fundamental para a atuação de Chico na década seguinte, que determinaria mudanças importantes na região. Nos anos 70, o governo federal passou a priorizar a ocupação da Amazônia com grandes projetos de infra-estrutura voltados para áreas como a agropecuária, a exploração madeireira e a mineração. Tudo isso envolvia também o abandono do apoio estatal à produção de borracha. “O Delfim Netto fechou o Banco da Borracha e o governo instituiu incentivos fiscais para grandes empresas se instalarem na região amazônica”, conta Edílson Martins, último jornalista a entrevistar Chico Mendes em vida (ver aqui).
Assim, fazendeiros vindos do Sul e Sudeste compravam terras a preço baixo e iam se instalar, a pretexto de ter o “justo título”, nas terras já ocupadas pelos seringueiros. Se por um lado a empresa seringalista e a estrutura quase escravista de exploração do trabalho a que os trabalhadores rurais eram submetidos estavam em xeque, em dado momento a própria sobrevivência de quem ali estava ficou ameaçada. A conta é simples. “Enquanto uma estrada de seringa rendia trabalho para cinqüenta, às vezes cem famílias no mesmo terreno, quando o terreno era ocupado pela pastagem para o gado eram necessárias duas ou três famílias”, esclarece Martins.
Chico Mendes em sua casa na cidade de Xapuri (AC), com seus dois filhos: Elenira e Sandino Mendes (Foto Miranda Smith, Miranda Productions, Inc./Wikimedia Commons)
A organização dos trabalhadores
Diante da iminência de uma catástrofe social, os seringueiros começam a se organizar para evitar a derrubada da floresta. A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), chamada a campo pelo Ministério do Trabalho e pela Igreja, que se preocupava com as ameaças e a violência no campo, debruçava-se sobre os efeitos da crescente especulação fundiá­ria e buscava articulação nos estados da Amazônia. Não demorou a chegar uma comissão ao estado do extremo oeste do país, em 1975. Em novembro, membros da Confederação utilizaram o salão paroquial da cidade de Brasiléia para dar um curso de formação sindical aos trabalhadores da região. Entre eles estava Chico Mendes. Contudo, quem se destacava era Wilson Pinheiro, camponês que chamava atenção pela firmeza da fala e pelo forte físico.
“Meu pai tinha sido estivador em Porto Velho, nas andanças de correr atrás da vida, depois de ter saído fugido de Rio Branco aos 18 anos, com o assassinato do pai dele, meu avô”, conta Iamar Pinheiro, uma das sete filhas de Wilson (além delas, há mais um, homem), hoje moradora de Epitaciolândia, no interior do estado. O pai de Wilson Pinheiro era também pequeno agricultor e foi assassinado depois de conflitos por terra. A família, que migrara de Manaus, voltou correndo, mas Wilson teve que “correr atrás da vida”, encontrando emprego na estiva.
No setor em que os trabalhadores historicamente enfrentam explorações, Pinheiro logo associou-se à entidade de classe e fez da participação sindical uma prática de sobrevivência. Ao se mudar para o Acre, levou consigo a experiência que chamaria a atenção dos mobilizadores da Contag. Assim, em dezembro de 1975, fundava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, sendo eleito presidente do Conselho Fiscal da entidade. Na prática, era ele a liderança de referência na região. Chico foi eleito secretário geral.
Surgiriam logo depois os sindicatos de trabalhadores rurais de Rio Branco e Xapuri. Com mais organização, era preciso agora escolher a melhor estratégia para evitar a derrubada dos seringais. Chico Mendes, em uma palestra proferida em 1988 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), promovida pelo geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, explicava as dificuldades àquela altura. “Nós tentamos por via legal, a partir de 1975, barrar os desmatamentos. Ou seja, recorrendo a advogados, por via judicial, na tentativa de impedir os desmatamentos. Só que tanto a polícia, naquela época, como os juízes eram comprados pelos latifundiá­rios”, acusava.
Assim, acabou sendo desenvolvida uma técnica pacífica para combater o desmatamento: o “empate”. De novo, é Chico quem explica, na palestra da USP. “Então nós decidimos criar um movimento pacifista e aí acionamos mulheres e crianças para o movimento de empate. Quando a polícia se deslocava para uma área, nos deslocávamos também, com homens, mulheres e crianças, com mutirões de 100, 200, até 300 pessoas e lá ficávamos diante da polícia, com todas as suas metralhadoras e fuzis. Ela refletia e finalmente em muitos momentos recuava porque pensava duas vezes em atirar numa criança.”
O empate também envolvia bastante diálogo, já que muitos daqueles encarregados em derrubar as árvores tinham sido seringueiros também. “Os trabalhadores sabiam que não poderiam entrar em um conflito armado, porque perderiam a credibilidade e seriam massacrados”, explica dom Moacyr Grechi, bispo local e um dos principais aliados dos seringueiros na região. Aliás, todo o movimento tinha a influência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica. O próprio Chico Mendes, em um momento extremo, morou durante seis meses na igreja de Xapuri. “Os únicos em quem a polícia e os militares não podiam tocar éramos nós [os religiosos] e isso foi fundamental naquele momento”, recorda Grechi. O fato é que os empates dos trabalhadores fizeram com que muitas áreas que seriam desmatadas não o fossem. Aquilo desagradou fazendeiros e feriu grandes interesses, mas ainda assim era preciso formular uma alternativa que garantisse a subsistência dos seringueiros e o desenvolvimento sustentável da floresta.
Liderança à prova e as reservas extrativistas
Na década de 80, o movimento dos trabalhadores rurais sofreria um duro golpe. No fim da tarde de 21 de julho de 1980, Wilson Pinheiro recebeu um tiro na nuca dentro da sede do sindicato de Brasiléia. Sem cerimônia, um pistoleiro entrou na casa enquanto Wilson, desprevenido, assistia à novela com alguns companheiros.
Esse crime não passaria em branco. Em visita ao Acre logo depois do assassinato, o então presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, fundava com Chico Mendes o partido no estado e aproveitava a ocasião para realizar um ato público contra o assassinato de Pinheiro. “Está na hora da onça beber água”, disse. A frase, na boca de Lula e também na de Chico Mendes, foi considerada um ato de incitação à violência e de subversão, ainda mais depois que um grupo de seringueiros executou o mandante do assassinato de Wilson Pinheiro.
“O curioso da história é que depois que o fazendeiro foi assassinado elaborou-se um inquérito policial de centenas de páginas, com a prisão temporária de 300 seringueiros”, conta o advogado Genésio Natividade, que trabalhava para os seringueiros no Acre por iniciativa do Instituto de Estudos Amazônicos, do Paraná. O clima de acirramento e a sensação de impunidade eram dificuldades a mais que punham à prova a liderança de Chico, considerado o sucessor de Pinheiro naquele momento. Ali, teve que exercer toda sua capacidade de articulação e criatividade para levar a luta além da execução de empates.
A resistência dos seringueiros continuou, deslocando seu epicentro para Xapuri, onde Chico Mendes era vereador, conta Gomercindo Rodrigues, um dos melhores amigos dele. Sul-matogrossense, ele se mudou para o Acre em 1983 como funcionário da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e se tornou assessor do movimento dos seringueiros, no qual atua até hoje, como advogado (agrônomo, ele cursou Direito para defender os trabalhadores rurais após a morte de Chico).
Ricardo Gebrim foi enviado ao Acre em 1988, recém-formado e a serviço da CUT, para estruturar o Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais (DNTR) e cuidar principalmente das campanhas trabalhistas e sindicais dos trabalhadores rurais. Gebrim viu ali um forte quadro. “O Chico transitava muito bem entre as correntes, era muito bem articulado, muito inteligente, capaz, hábil e tinha muita percepção política. Ele era um dos únicos que possuía uma formação ideológica de esquerda, era uma referência para os outros ali”, descreve.
Ao mesmo tempo que participava da vida sindical e trabalhava junto a movimentos sociais, Chico atuava pela via institucional. Vereador eleito em 77 pelo MDB, mudou para o PT em 1981, candidatando-se pelo partido ao cargo de deputado estadual em 1982 e 1986 (em chapa junto com Marina Silva, candidata a deputada federal) e ao cargo de prefeito em 1988. Mesmo perdendo as eleições, tinha um bom trânsito dentro de seu segmento e de sua categoria, buscando e conseguindo todo tipo de apoio civil ao movimento, que avançava por diversos flancos. Um dos mais estratégicos certamente era o Projeto Seringueiro, que trabalhava com a alfabetização e a capacitação dos trabalhadores na área de contabilidade, para possibilitar a estruturação de cooperativas e fortalecimento econômico da atividade extrativista.
A facilidade de diálogo que Chico tinha naturalmente fez com que ele preparasse o grande salto para a organização local. A realização, em Brasília, do 1º Encontro Nacional dos Seringueiros, em 1985, propiciou avanços como a formação do Conselho Nacional da categoria, que passa a representar e articular os trabalhadores agroextrativistas, incorporando definitivamente a defesa da floresta como bandeira de luta.
A mesma ocasião também marca os primeiros passos da aliança dos povos da floresta, com a aproximação entre seringueiros e indígenas, antes inimigos históricos, resultando na idéia que nortearia o movimento a partir de então: a batalha pela instituição das reservas extrativistas. “Na preparação para o encontro nacional, em uma das reuniões, um seringueiro colocou a questão: por que eles não poderiam seguir um modelo de reserva semelhante ao dos indígenas? Daí surgiu a idéia da reserva extrativista”, conta o governador do Acre Binho Marques (PT), que conheceu Chico Mendes quando trabalhava como historiador no Projeto Seringueiro.
A reserva extrativista representava para os seringueiros do Acre a tradução da idéia de reforma agrária para o contexto local. Do modo que a redistribuição fundiária era discutida naquela época, com base no Estatuto da Terra, o modelo tornava-se totalmente inadequado para os trabalhadores rurais acreanos. De novo é o próprio Chico que explica o conceito. “A reserva extrativista é uma forma que nós descobrimos de se fazer uso racional da terra. Você pode plantar culturas permanentes, você pode continuar a extração da borracha, da castanha, de outros produtos extrativistas, inclusive aí se inclui também a questão das árvores medicinais e tanta riqueza que existe nessa mata. Pode-se usá-la e ela pode servir como uma forma de industrialização e se tornar uma região com um grande potencial econômico para o país.”
A forma de explicar as vantagens da reserva extrativista chamou a atenção de ambientalistas internacionais, convidados a participar do Encontro dos Seringueiros. Entre eles, estava o cineasta inglês Adrian Cowell, que passou a década de 80 praticamente inteira no Brasil, filmando em Rondônia a série de filmes sobre a chamada “década da destruição” na Amazônia. Conhecido de Robert Lamb, executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), o cineas­ta envolvido com ecologia foi um dos que viu, na idéia das reservas extrativistas, uma lâmpada se acender. “Era uma coisa muito simples – juntar a reserva indígena e a atividade extrativista; era impressionante ninguém ter pensado nisso antes”, avalia. A partir daí, quis filmar a proposta, tendo em Chico Mendes a figura central de seu documentário, que seria mais um da sua série.
Muito além do Acre
O documentário demoraria a sair, mas mesmo assim a luta local dos trabalhadores rurais alcançou uma dimensão internacional. Embora fosse praticamente ignorado pela imprensa brasileira – com raras exceções –, Chico Mendes conseguiu articular alianças importantes que asseguraram visibilidade para sua luta. É quase uma unanimidade que a proximidade dele com a antropóloga Mary Alegretti facilitou com que fossem feitas pontes com organizações, políticos e jornalistas estrangeiros.
A conexão estabelecida com o também antropólogo Steve Schwartzman, por meio de Mary, foi fundamental para diversos passos internacionais de Chico. Ainda mais no contexto da segunda metade da década de 80, quando a questão ambiental estava em ascensão e as práticas e bandeiras dos seringueiros já consistiam naturalmente na defesa de atividades sustentáveis, embora o termo somente fosse cunhado muito depois da primeira forte atuação dos trabalhadores para conter o desmatamento no Acre.
“O Chico não assimilou nenhum discurso ambientalista, o que aconteceu foi que os ambientalistas vinham falar como tinha que ser na floresta e os seringueiros diziam ‘nós já fazemos assim’. Então eles falavam ‘nossa, vocês são ecologistas’, e nós respondíamos ‘do que é que vocês estão nos xingando?!’”, lembra Gomercindo. “O que Chico assimilou foram os termos técnicos, que passou a usar mais nos discursos porque percebia que essa era uma forma de atrair mais e mais apoios e parcerias para o movimento”, completa o advogado.
Foi utilizando como base a argumentação ambientalista que Chico Mendes convenceu o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) a suspender o financiamento da construção do trecho da BR-364, que ligava Porto Velho (RO) a Rio Branco. Idealizada por Adrian Cowell e Steve Schwartzman, a ida de Chico Mendes à reunião do banco em Miami, em 1987, tinha como meta fazer chegar aos banqueiros um relato local de que as regras de controle ambiental para estabelecimento da estrada não estavam sendo respeitadas. O fato repercutiu, mas ainda mais que isso ganhou dimensão o fato de o Pnuma escolher o nome de Chico Mendes – indicado pelo cineasta inglês – para ser o premiado ao “Global 500” daquele ano, uma espécie de Nobel da ONU promovido na época. “Naturalmente, o posto de vencedor desse prêmio aguçou o interesse de muitos jornalistas na Europa, onde Chico Mendes ganhou bastante espaço de mídia”, relata Cowell.
De volta ao Brasil e ao Acre
No Brasil, como dizia Chico Mendes citando um bordão de esquerda, “a luta continuava”. E, no Acre, ela trazia mais desafios. Com a paralisação que ele conseguiu nas obras da rodovia, os especuladores acreanos estavam furiosos e faziam ecoar nos meios de comunicação locais que o líder seringueiro era responsável pelo “atraso” na região. Sua imagem era construída como a de um inimigo público, sendo visto como um obstáculo para os fazendeiros. E obstáculos, para alguns deles, não foram feitos para serem contornados, mas simplesmente eliminados.
As práticas contra os trabalhadores rurais já eram tradicionalmente violentas – o Acre pouco mudara desde antes do assassinato do pai de Wilson Pinheiro, dele próprio e de diversos outros integrantes dos sindicatos e movimentos dos trabalhadores rurais, que passaram a ser um alvo mais constante em 1988. Só naquele ano, houve um atentado de pistoleiros contra um acampamento de protesto na sede do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF, o atual Ibama), em que dois jovens foram feridos, um deles tendo ficado tetraplégico; uma morte de um líder mais religioso que sindical, Ivair Higino, em junho; e, em 11 de setembro, José Ribeiro, que havia saído de casa à noite para comprar algum produto de urgência para sua casa, também perdeu a vida. Para alguns integrantes dos movimentos, os crescentes ataques eram avisos de que a intenção era abater a liderança e todos se preocupavam com Chico Mendes.
“No começo de dezembro, quando o Chico estava no Rio, o Genésio conversou comigo e a idéia era fazermos de tudo para segurar o Chico por lá”, conta Gomercindo. “A gente sabia que, no fim do ano, só ficava o terceiro escalão das autoridades e que o tempo poderia ser muito propício para a consumação do assassinato”, lembra o advogado Genésio Natividade.
No entanto, ninguém conseguia impedir Chico Mendes de voltar e ficar no Acre. Um pouco pela obrigação de resistir, da esperança de que poderia se esquivar de atentados que, sabia, estavam certos (já havia escapado em outras seis oportunidades); um pouco pela saudade de casa, ele que era um homem que viajava muito mais do que gostaria e que, no fundo, não queria deixar sozinhos a esposa, Ilzamar, e os dois filhos pequenos, Elenira e Sandino [os nomes dos dois filhos mais novos de Chico Mendes eram intencionalmente os mesmos de guerrilheiros que Chico admirava – Elenira, guerrilheira do Araguaia, e Sandino, revolucionário nicaragüense.], ele fazia questão de estar em Xapuri a partir do seu aniversário de 44 anos, dia 15 de dezembro, até o Natal. “Ele dizia que depois do Natal ele topava sair do Acre”, conta Genésio.
No dia 22 de dezembro, com a família reunida para jantar, Chico resolveu tomar um banho antes de comer. Já estava escurecendo e, embora ele tivesse dois homens da polícia fazendo sua segurança particular, por causa das constantes ameaças que vinha sofrendo, nenhum deles se deu o trabalho de fazer uma diligência para se prevenir de tocaias, apesar de o próprio Chico ter constatado: “está escuro, os caras podem estar me atocaiando…”. Sem esperar atitude dos seguranças, resolveu ele mesmo pegar uma lanterna para sair até o banheiro, que era do lado de fora da casa. A lanterna não ajudou, e Chico foi pego exatamente assim, por um assassino preparando tocaia escondido entre as árvores, que disparou o tiro de espingarda na direção exata de seu coração. De acordo com depoimentos da viúva Ilzamar, Chico Mendes se voltou para dentro de casa, com o peito sangrando e as mãos na cabeça e, caminhando em direção ao quarto, ainda disse “puxa, os caras me acertaram”.
Um vizinho o socorreu e algumas pessoas se mobilizaram para arrumar um carro e levá-lo ao hospital. Em vão. Ele já estava morto. Enquanto isso, os seguranças haviam corrido para o lado contrário de onde tinha vindo o tiro e os policiais da delegacia que ficava a 50 metros da casa de Chico Mendes não se mexiam, como conta Gomercindo, que presenciou a comoção de parte das pessoas logo depois do assassinato.
Efeito reverso
Embora Chico Mendes tivesse avaliado que, enfim, seus inimigos haviam vencido, o que se viu a partir do dia seguinte foi o inverso da previsão feita em sua última entrevista, dada ao The New York Times e ao Jornal do Brasil (ver matéria aqui). Ali ele raciocinava que só seria útil à Amazônia vivo, para articular as ações necessárias para o movimento. Como mártir, ele não resolveria nada. Queria era viver, apesar de saber que estava marcado para morrer.
Amigos de outras regiões do Brasil e do exterior, jornalistas de toda parte, ambientalistas e diversas pessoas, envolvidas com qualquer uma das bandeiras de Chico Mendes, foram para Xapuri em pleno feriado de Natal. Na missa de corpo presente e no enterro do líder, milhares de pessoas davam a prévia de que aquela morte, em especial, não passaria batida. A memória de Chico Mendes passaria a estar constantemente presente em todo o mundo.
Hoje, as idéias de Chico vivem, principalmente no Acre, que seu legado transformou em um lugar totalmente diferente do que era à época em que foi assassinado (ver matéria aqui). E, embora sua causa esteja essencialmente ligada à questão ambiental, sua herança é bem mais ampla. Não era apenas “verde”, como podem querer fazer crer hoje, sonhava um sonho muito maior. “O Chico era um quadro político realmente diferenciado, uma figura comparável à do Lula”, avalia Ricardo Gebrim.
Vivo, hoje provavelmente ocuparia uma posição de destaque dentro do espectro da esquerda brasileira. “O Chico era acima de tudo um socialista, do fundo do coração”, atesta Gomercindo Rodrigues. Foi na casa do amigo, em 1988, que Chico deixou um bilhete, com a data fictícia de 6 de setembro de 2120, no qual imaginava uma futura revolução socialista mundial, que então completaria o seu primeiro centenário. E registrava: “aqui fica somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte”. Esse passado ainda não está superado, mas o caminho hoje é trilhado graças, em grande parte, à vida de Chico Mendes.