A Lei de Hering Revisitada - Elisa Tatiana Poltronieri* Maria José Ricardo de Oliveira* Maria Tereza Albuquerque de Oliveira*
Resumo
Um conceito tradicional na clínica homeopática unicista é a noção de “leis de cura”, sugeridas por Hering e
formalizadas por Kent. O homeopata canadense André Saine, em extensa revisão da literatura, não achou
embasamento para a suposta “lei”. Contudo não fornece evidência empírica para sua refutação. As autoras
realizaram uma pesquisa em pacientes considerados “curados”, constatando de forma preliminar que as “leis
de cura” não se verificaram. Este tipo de pesquisa é necessário para substituir a tradição herdada por
conhecimentos intersubjetivamente validados, tal como demandam os cânones epistemológicos vigentes na
atualidade no campo científico.
Palavras-Chave
Leis de Cura - Hering - Kent - Saine - Análise
Quantitativa
Um dos conceitos tradicionais na clínica homeopática unicista de linha kentiana é a noção de que existem
“leis de cura”. Vale dizer, um tratamento pode ser avaliado em função da direção em que se processam os
efeitos induzidos pelos medicamentos.
Essas leis teriam sido formuladas por Constantin Hering (1800-1880) e posteriormente modificadas e difundidas por James Tyler Kent (1849-1916) como “lei de cura de Hering” (KENT, 1999).
Segundo a mesma, para se interpretar uma determinada evolução clínica como “cura”, deve se observar
os seguintes critérios: os sintomas devem desaparecer 1.De dentro para fora (direção centrífuga dos sintomas);
2. De cima para baixo;
3. Dos órgãos mais nobres para os menos nobres;
4. Na ordem inversa a de seu aparecimento (reaparecimento
de sintomas antigos).
Abstract “Hering’s Law” is a classic component of unicist Homeopathy of the Kentian tradition. This law would have been suggested by Hering and established by Kent.
Canadian homeopath André Saine, through extensive bibliographical research, questions this alleged “law”
existence. Yet, he doesn’t supply significant empirical support to his hypothesis. Authors conducted quantitative research in actual patients labeled as “healed”.
Preliminary results show that positive clinical outcomes weren’t ruled by “Hering’s Law”. Authors hold that this kind of research is necessary in order to replace the inherited tradition with intersubjectively validated
knowledge as contemporary scientific patterns demand.
Keywords / Hering’s Law - Hering - Kent - Saine - Quantitative Analysis
Esse conceito difundiu-se com pleno valor normativo nos círculos homeopáticos de linha unicista (EYZAYAGA, 1992: cap. XVI; COULTER, 1988: 416-420). Foi incluído nos conteúdos curriculares de diversas entidades de ensino da homeopatia no país e no exterior.
O homeopata canadense contemporâneo André Saine refere que foi precisamente nos cursos de formação homeopática realizados em seu país que tomou conhecimento desta “lei”, com seu valor normativo absoluto. Entretanto, comenta que a prática clínica real lhe fez duvidar desse caráter normativo.
Vale dizer, a prática mostrava que os pacientes também podiam curar-se embora a evolução clínica não
seguisse a direção “prescrita” pela “lei” em questão (SAINE, 1988).
Intrigado, conta que procurou professores e colegas, sem receber resposta satisfatória. Isso foi estímulo para realizar uma vasta pesquisa bibliográfica que, finalmente, permitiu-lhe concluir (SAINE, 1988):
1. Que Hering jamais formulou quaisquer “leis” de cura.Mas, com base em suas observações clínicas e outras de Hahnemann, sugeriu que a direção seguida pelos sintomas poderia ter algum valor indicativo da evolução do caso. Cabe mencionar, neste contexto, que com o decorrer do tempo foi restringindo essas indicações a uma só;
2. Que os discípulos de Hering jamais se referiram a essa suposta lei de seu mestre;
3. Que a única referência na literatura homeopática a uma suposta “lei de cura de Hering” é a realizada por
Kent, mencionada acima. A essas conclusões, Saine acrescenta uma crítica metodológica:
Kent teria apresentado a suposta lei como um fato, sem produzir evidência empírica que a confirmasse.
Entretanto, a mesma crítica pode ser dirigida ao próprio Saine, porquanto seu suporte empírico limita-se
a comentários sobre casos de sua prática pessoal, sem fazer explícitos dados objetivos estatisticamente analisáveis.
Sua tentativa de confirmação consistiu apenas em:
“...Perguntar para mestres e colegas, alguns deles com muitos anos de experiência. Poucos puderam responder minhas perguntas e nenhum foi capaz de sustentar [com dados de] sua própria prática, sem a menor dúvida, que a lei de Hering é uma verdadeira lei da natureza. Minha impressão é que a maioria estava na mesma situação que eu, até supostas autoridades aceitavam discutir a questão comigo apenas em privado.” (SAINE, 1988)1
O estágio atual do desenvolvimento homeopático demanda uma abordagem mais rigorosa de conceitos e
práticas. Além das exigências internas de coerência e consistência, acrescenta-se a permanente crítica da mídia leiga e também da medicina convencional, questionando, justamente, seu estatuto científico.
Por esses motivos, decidiu-se realizar uma análise quantitativa da evolução de casos a fim de conferir se a
“cura” se processa de acordo com as direções prescritas pela “lei de Hering”.
Metodologia
Optou-se por realizar uma análise retrospectiva da evolução clínica de casos supostamente “curados”, devido ao contexto da realização da presente pesquisa – monografia para conclusão de curso de especialização em homeopatia – que limitava o período de tempo disponível.
Uma análise prospectiva,embora muito interessante, era inviável em função dos critérios de inclusão, expostos a seguir.
A população do estudo restringiu-se a pacientes atendidos nos ambulatórios docentes da Escola de Homeopatia (EH), incluindo, em virtude da continuidade histórica, os pacientes atendidos em ambulatórios
da Associação Paulista de Homeopatia e que foram transferidos para a EH.
Desses ambulatórios, foram selecionados para o estudo pacientes com mais de dois anos de tratamento, isto porque a clínica da EH atende, em geral, pacientes portadores de patologia crônica, o que demanda tempos relativamente prolongados de acompanhamento. Pelo mesmo motivo, determinou-se como critério de inclusão os casos acompanhados por no mínimo dois anos e que fossem considerados “curados”pelos orientadores dos ambulatórios.
Os registros dos casos foram minuciosamente analisados com o objetivo de:
1. Confirmar se realmente se tratava de “curas” e não de paliações ou supressões;
2.Averiguar se a cura havia se processado de acordo com os quatros componentes da lei de cura.
Os dados foram analisados de forma freqüencial simples e tabulados.
Resultados
Cinco ambulatórios da EH indicaram casos que cumpriam os requisitos de inclusão, fornecendo um
total de trinta prontuários.
Oito casos não cumpriam o requisito de acompanhamento mínimo de dois anos e foram excluídos.
Em dois casos, o registro estava incompleto, sendo impossível se estabelecer a cronologia do desaparecimento dos sintomas e, portanto, foram excluídos.
Finalmente, um grupo de cinco casos foi excluído por ilegibilidade do prontuário.
Dos quinze casos restantes, a análise mostrou que sete não podiam ser considerados curados, mas
suprimidos (aprofundamento da patologia, aparecimento de metástases mórbidas).
Portanto, a análise final ficou restrita a oito casos.
Os resultados estão na Tabela 1.
Discussão
O estudo sofreu vários entraves que nos levaram a excluir 73,3% dos casos selecionados e a despender um
tempo maior que o previsto para a sua realização, tempo esse que nos teria permitido analisar outros casos.
As principais dificuldades encontradas foram:
1. Inobservância dos critérios de seleção de casos:
os critérios de escolha dos casos a serem analisados não foram observados. Aqueles que não cumpriram pelo menos um dos critérios foram descartados do estudo na fase inicial.
1. Cabe mencionar que esta advertência já havia sido formulada por Anna Kossak-Romanach, que tampouco fornece evidência objetiva (KOSSAK-ROMANACH, 1984:101).
Casos Leis de Cura
Lei 1 Lei 2 Lei3 Lei4
F.M.S. NC NC NC NC
C.A.S. NC NC NC NC
R.V.S. NC NC NC NC
J.C.L. NC NC NC NC
S.C. NC NC NC NC
I.G.P. C NC C NC
I.N.R. C NC C NC
M.B. C C C NC
Lei 1: De dentro pra fora
Lei2: De cima para baixo
Lei3: Dos orgãos mais nobres para os menos nobres
Lei4: Desaparecimento dos sintomas na ordem inversa do seu aparecimento
* NC: não cumpriu a lei
C: cumpriu a lei
Tabela 1. Cumprimento das Leis de Cura*
2. Defeitos na anamnese:
2.1 Cronologia: em alguns dos casos analisados, não encontramos registrada a seqüência cronológica
do aparecimento e desaparecimento dos sintomas. Um caso com boa evolução teve de ser descartado porque não pudemos constatar se os sintomas desapareceram na ordem inversa de seu aparecimento.
2.2 Grafia: a letra do responsável pela tomada do caso era ilegível e o caso não pôde ser analisado.
2.3 Avaliação dos sintomas: sintomas importantes relatados na primeira consulta não foram reavaliados
nas consultas subseqüentes, portanto não foi possível analisar sua evolução posterior.
3. Exame físico: as lesões presentes na primeira consulta ou que aparecem no decorrer do tratamento devem
ser descritas nas consultas posteriores, pois sua evolução – desaparecimento ou agravação – fornece
parâmetros importantes para a análise do caso.
Dos casos analisados no presente estudo, de acordo com os critérios de análise pré-estabelecidos, observamos que em dois casos os sintomas melhoraram de dentro para fora e dos órgãos mais nobres para os menos nobres, cumprindo-se, portanto, duas das leis de cura. Em um terceiro caso houve melhora de dentro para fora, de cima para baixo e dos órgãos mais nobres para os menos nobres, cumprindo-se assim três das leis. Nos cinco casos restantes não se verificou o cumprimento de nenhuma das quatro leis.
Conclusão
Nosso estudo sugere que a lei de cura atribuída por Kent a Hering não se cumpre na prática.
Na análise realizada em oito casos clínicos, pudemos constatar que a melhora de dentro para fora
ocorreu em 37,5% dos casos. Na mesma porcentagem observamos melhora dos sintomas mentais em
primeiro lugar.Nos demais casos, 62,5%, nenhuma das “leis de cura” foi cumprida.
Devido ao pequeno tamanho da amostra, os resultados só podem ser considerados preliminares e com
valor meramente sugestivo. Entretanto, nossa revisão bibliográfica parece indicar que se trata do primeiro
trabalho que procura evidências objetivas para a existência da “lei de cura”. Sua verificação ou refutação
exige novos estudos e em maior escala.
Do outro lado, o estatuto epistemológico dessa suposta lei deve ser revisado e debatido pela comunidade
homeopática. A literatura não oferece evidências empíricas e nossa pesquisa tampouco contribui para uma eventual verificação. Como mencionado acima, a homeopatia é um campo científico e, como tal, é passível de pesquisa intersubjetivamente validada, especialmente acerca de conceitos e práticas que foram transmitidos e consagrados acriticamente como saber herdado.
Como resultado colateral da presente pesquisa, não se pode deixar de mencionar que seria extremamente
benéfico que as fichas clínicas de ambulatórios de instituições de ensino e pesquisa fossem padronizadas a fim de facilitar a atividade dos pesquisadores.
Data de recebimento: 23/05/2005
Data da aprovação: 17/07/2005
Não foi declarado nenhum conflito de interesse.
Referências Bibliográficas
COULTER, H.L. Divided Legacy. A History of the Schism in Medical Thought. Vol. II. Washington, DC/Berkeley:
Wehawken Book/North Atlantic Books, 1988. [4 vol.]
EIZAYAGA, F.X. Tratado de Medicina Homeopática. 3ª ed. Buenos Aires: Marecel, 1992.
KENT, J.T. “The Lesser Writings” In R. Séror & S. Cazalet. (org.) Website Homeoint.
http://www.homeoint.org/books3/kentwrit/writ24.htm. Acessado em fevereiro de 2004.
KOSSAK-ROMANACH, A. Homeopatia em 1000 Conceitos. São Paulo: Elcid, 1984.
SAINE, A. “Hering's Law: law, rule or dogma?” Website da Canadian Academy of Homeopathy. http://www.homeopathy.
ca/articles/heriing_law.html. Acessado em fevereiro de 2004. (Trabalho apresentado em Second Annual
Session of the Homeopathic Academy of Naturopathic Physicians in Seattle, Washington, april 16-17, 1988.)
Fonte: Elisa Tatiana Poltronieri,Maria José Ricardo de Oliveira e Maria Tereza Albuquerque de Oliveira