Miriam Leitão e a peculiar ideia de democracia da Globo
Miguel do Rosário
Permitam-me fazer uma coisa já meio fora de moda. Irei comentar passo a passo a coluna de hoje (sábado) de Miriam Leitão, no jornal O Globo. Ela critica a presidente Dilma por estar presente em evento de seu próprio partido no qual se criticou duramente o julgamento da Ação Penal 470. O mensalão é um ponto de honra para as Organizações Globo (e, sobretudo, para o jornal Globo). Aliás, a Globo é o principal sustentáculo dessa farsa. Por isso mesmo a empresa sabe que, se ela ruir, causará grande prejuízo de imagem à Globo. Mas vamos à Miriam. O texto dela vai em negrito, o meu em fonte normal.
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Dilma tomou partido
Por Miriam Leitão, no Globo.
Quando a presidente da República participa de um evento em que se acusa a cúpula do Judiciário de manipulação, e de ter realizado um julgamento de exceção, está enfraquecendo a democracia brasileira. Foi o que a presidente Dilma fez. O que ela não disse explicitamente, o ex-presidente Lula o fez. O que ela demonstrou no 5º Congresso do PT, por ação ou omissão, é grave.
. O raciocínio de Miriam inicia com uma falha estrutural. Ela não infere que, se o judiciário manipulou e realizou um julgamento de exceção, não é Dilma, nem um evento partidário, que está enfraquecendo a democracia. É o judiciário. E foi isso justamente o que aconteceu.
Dilma sabia o que seria a abertura do 5º Congresso do seu partido. Sabia que lá defenderiam os condenados do mensalão. Ao mesmo tempo, como chefe do Poder Executivo, ela não pode participar de um ato em que a Justiça brasileira está sob ataque. O Supremo Tribunal Federal cumpriu todo o devido processo legal. Dilma consentiu — pelo silêncio e pela presença — com as acusações ao Tribunal. Ela é militante do PT e é a candidata. A situação era delicada, mas ela só poderia participar de um evento sóbrio em que não ocorresse o que ocorreu.
. Bem, é claro que Dilma sabia que haveria críticas ao julgamento da Ação Penal 470. Ela não vive no mundo da lua. Se a própria Miriam Leitão saísse de seu circuitozinho global, e transitasse por outros meios, veria que a revolta contra os desmandos do STF há muito deixou de ser uma questão meramente partidária. É hoje uma questão jurídica, política e ética. O STF chancelou um golpe, com base em mentiras, sob forte pressão dos grandes meios de comunicação, liderados pela Globo. Quem atacou a Justiça não foram os militantes do PT, muito menos Dilma. Quem assediou o STF foi uma grande mídia convertida em partido político. Quem desmoralizou o STF foram ministros rendidos à sua própria covardia perante a pressão de uma imprensa com longo histórico de golpes contra a democracia.
O presidente Lula, como é de seu feitio, fez o que disse que não faria e acusou o julgamento de ter sido resultado da “maior campanha de difamação”. Dilma pensa que se protegeu atrás de afirmações indiretas como a de que os petistas têm “couro duro” ou o partido está em “momentos difíceis”. Pensava que ficara em cima do muro, mas estava tomando partido.
A chefe do executivo de um governo democrático só pode ir para uma reunião de correligionários em que o Poder Judiciário é atacado se for para defendê-lo. Seu silêncio a coloca do lado dos que acusaram o processo de ser de exceção. Ela sabe bem a diferença.
. O carisma de Lula vem de sua sensibilidade em relação às pessoas, de um lado, e sua argúcia em relação ao processo político, de outro. Lula entendeu, há tempos, que o mensalão foi uma farsa construída para derrubar seu governo; e quando isso não foi possível, transformou-se num instrumento de vingança para constrangê-lo. Os erros e crimes que ocorreram foram todos admitidos. Mas a mídia não queria saber de verdades. Não queria saber de caixa 2. Não queria saber de desculpas. Ela queria inventar a sua própria história. A Globo queria uma novela. E a criou.
Concordo que a presidente deve defender o poder judiciário, mas desde que este não extrapole suas funções. O STF transformou-se num pequeno parlamento, ultrapolitizado, e o que vimos na julgamento da Ação Penal 470 não foi um julgamento, mas uma espécie de Comissão Parlamentar de Inquérito onde apenas os acusadores falavam. E onde qualquer mínima discordância resultava em massacre midiático no dia seguinte. Vide o caso do ministro Ricardo Lewandowski, que era assacado impiedosamente nos jornais por causa de tímidas divergências pontuais com as teses defendidas pelo relator do processo, Joaquim Barbosa.
Seus amigos e companheiros José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares, João Paulo Cunha e aliados de outros partidos foram investigados pelo Ministério Público e denunciados. O STF aceitou a denúncia e em sete anos de tramitação do processo deu amplo direito de defesa aos réus e analisa os recursos. Os juízes foram em sua maioria escolhidos por ela ou por seu antecessor. Houve troca de juízes mas não de juízo da maior corte do país. Eles foram considerados culpados.
. Não é verdade que foi dado “amplo direito de defesa aos réus”. Provas foram deliberadamente ocultadas com vistas a prejudicar a defesa dos réus. As informações vazaram, Miriam. Felizmente, existe vida fora da Globo. As pessoas puderam ler reportagens do Raimundo Pereira em sua revista, a Retrato do Brasil. As pessoas tiveram acesso a documentos, vídeos, provas. Merval Pereira pode ser sido endeusado por alguns setores sociais, levado à Academia Brasileira de Letras, bajulado por ministros do Supremo como Gilmar Mendes e Ayres Brito. Mas havia gente do outro lado da rua observando a cena com uma expressão estranha no rosto, Miriam. Estavam em dúvida. Estavam desconfiados que havia confete demais naquele julgamento. E quando foram se informar, descobriram seus terríveis vícios.
O julgamento foi feito com base nas leis e na Constituição. Os militantes podem gritar qualquer coisa, mas o grave é a presidente estar ali, consentir pelo silêncio ou por menções indiretas para serem interpretadas pelos militantes como concordância. Enquanto exercer o mandato ela não é apenas a Dilma, ela representa o Poder Executivo.
. Miriam, você conhece a história. Você sabe que quase todo golpe político acontece “com base nas leis e na Constituição”. Se você ler as edições de abril de 1964 do jornal onde você escreve, verá que o golpe de 64 também aconteceu “com base nas leis e na Constituição”. Só que não. Porque assim como um corpo sem espírito não é mais do que uma casca vazia, decisões políticas ou judiciais feitas com má fé também não significam nada.
Dilma pode sentir solidariedade pelos companheiros. É natural. Mas não pode aquiescer, por silêncio ou meias palavras, com os que acusam a Justiça do governo democrático. Ela estar nesse desagravo é um ato com significado institucional.
. É sim, Miriam. É um ato com significado institucional. Mas não o sentido que você quer dar. O seu problema é que você quer fugir do que você é: você também é representante de um poder institucional, talvez um dos mais poderosos de todos. A Globo se tornou uma instituição política, da qual você é uma espécie de embaixadora. A presença da Dilma num evento do PT em que se acusa o STF de ter realizado um julgamento de exceção causou profundo constrangimento à Globo, porque, de certa forma, é uma derrota política. Por mais que a Globo tenha tentado, em alguns casos até com sucesso, criar uma imagem da presidenta totalmente descolada de suas origens partidárias e ideológicas, pintando-a como uma estadista fria, tecnocrática, fiel a um modelo pré-fabricado sobre como deve se portar um presidente da república (coisa que nunca conseguiram fazer com Lula, por exemplo). Por mais que a Globo tenha se arriscado nessa tentativa, porque acabou conferindo enorme popularidade – temporária – à Dilma junto a setores da classe média com pouca ou nenhuma simpatia pelo partido da presidente. Enfim, por mais que tenha feito tudo isso, a Globo não conseguiu realizar a alquimia final, definitiva, de fazer Dilma se desligar de seu partido e passar para o o lado deles. Dilma ainda é uma militante do PT, uma pessoa de esquerda, uma mulher cheia de brios e que, mais dia menos dia, pode querer tomar algumas atitudes contra os arbítrios da mídia. A mídia tem medo deste dia. Tem pavor. Mas tanto a mídia quanto Dilma sabem que, se este dia vier, estaremos ao lado da presidenta e da democracia!
A democracia passou por várias rupturas ao longo da história republicana. É conquista recente e que pertence ao povo brasileiro. Não pode ser ameaçada por atitudes que solapem a confiança nas instituições, e por interpretações diante das quais a presidente se cala e, portanto, consente.
. Ahá! Bem lembrado, Miriam! A democracia passou por várias rupturas… Em 2014, teremos uma importante efeméride. 50 anos de golpe de Estado! As edições do jornal O Globo naquele fatídico ano de 1964 agora estão disponíveis na internet. A democracia é uma conquista recente que pertence ao povo brasileiro, mas a conquistamos à fórceps, e contra a Globo! A Globo lutou, até o fim, contra a democracia e até hoje é uma instituição profundamente antidemocrática. O julgamento de exceção que assistimos no STF foi mais um golpe contra a democracia, um dos mais pérfidos. Mas assim como em 1964, a Globo procurou sempre manipular as palavras. Nos dias seguintes ao golpe de Estado, o Globo apenas repetia que a democracia brasileira tinha sido salva das mãos de comunistas, sindicalistas, ou seja, dos mesmos mensaleiros que hoje a Globo conseguiu pôr na cadeia, após uma das campanhas mais agressivas, espúrias e sensacionalistas da história da imprensa brasileira.
Dilma tentou manter uma posição ambígua até agora. Mas aquele era um local em que a militância gritaria as palavras de ordem oficiais do partido. Rui Falcão, presidente do PT, disse que os mensaleiros “foram condenados sem provas num processo nitidamente político”.
. Pois é, Miriam. Rui Falcão disse isso, e Rui Falcão é o presidente do PT e comandante geral da campanha pela reeleição da presidente Dilma. Então prepare-se. Vem chumbo grosso por aí. Vocês, do Globo, foram sádicos, golpistas e desonestos. Manipularam informações. Mentiram. Omitiram. Distorceram. Protegeram corruptos. Mesmo as suas críticas à figuras como Renan Calheiros e Henrique Alves sempre foram hipócritas e falsas, porque nunca disseram ao público de onde eles tiram o poder que eles têm: cadeias de televisão, onde distribuem o sinal da Globo em seus estados.
O nada a dizer diante disso, por parte da presidente, diz muito. O Supremo Tribunal Federal se debruçou com abundância de tempo sobre as provas, julgou e condenou. Dilma pode não ter gostado do resultado, pode discordar das penas pessoalmente, mas enquanto exercer o cargo não existe o “pessoalmente” em assuntos institucionais. Militantes podem atacar o Supremo. Mas a presidente da República, não. Sua presença naquele ato é lamentável e enfraquece a democracia.
. Tomara que sim, Miriam. Oxalá Dilma tome uma posição mais assertiva sobre o julgamento do mensalão, sobretudo porque ele pode ser um balão de ensaio para aplicar um golpe contra ela mesma. Se o Ministério Público e o STF conseguiram condenar réus sem provas, apenas “porque a literatura assim me permite”, então eles conseguem pegar qualquer pessoa. É evidente que esse é o risco supremo da democracia brasileira. O risco máximo. Você manipular a corte suprema para derrubar um adversário político. É tão óbvio. É tão fácil. Chantagear onze ministros, para a grande mídia, com o poder e o dinheiro que ela tem, é a coisa mais fácil do mundo.
A presença de Dilma num ato em que se criticou o julgamento de exceção é um alívio para aqueles que defendem a democracia. Porque ela é a presidente eleita pelo voto de milhões de brasileiros. A gente votou em Dilma, não em ministros do STF. Ela tem direito a fazer política. Os ministros do STF não têm. Vivemos um momento muito estranho, em que a imprensa acha normal juízes fazerem discursos políticos e considera a mera presença da presidente no congresso de seu próprio partido uma agressão à democracia. A Globo enxerga a democracia de cabeça para baixo. Tudo que para ela é uma ameaça à democracia, na verdade é o que a democracia tem de mais autêntico e pujante; e tudo o que ela considera como democrático, na verdade é golpe.
Se a Miriam já se esqueceu da peculiar visão de democracia do jornal O Globo, nós não. Não esqueceremos. Não perdoaremos. Jamais.
http://tijolaco.com.br/
"Se a Miriam já se esqueceu da peculiar visão de democracia do jornal O Globo, nós não. Não esqueceremos. Não perdoaremos. Jamais".
Míriam Leitão está preocupada com a democracia pelo motivo errado
Paulo Nogueira
Míriam Leitão estava hoje pela manhã no centro de uma polêmica no Twitter.
Ela postou um artigo no qual dizia que a presença de Dilma num evento contra o STF – o congresso do PT – “enfraquece a democracia”.
É curiosa a visão que certos jornalistas têm do mundo sob a ótica das empresas para as quais trabalham.
Logo o Twitter foi inundado com observações como as seguintes:
1) E o filho de Joaquim Barbosa trabalhando na Globo, não enfraquece a democracia?
2) E o abraço de Merval em Ayres Britto, não enfraquece a democracia?
3) E a sonegação documentada da Globo, não enfraquece a democracia?
Mas acima de tudo: a Globo de Roberto Marinho – lembremos 1954 e 1964 – promove a democracia?
Não sou um BIM, Brasileiro Indignado com a Mídia. Quer dizer: não leio o Globo. Não vejo a Globonews. Não ouço a CBN.
Isso tudo significa que não acompanho Míriam Leitão.
Tenho, no entanto, uma simpatia longínqua por ela. Na Veja, no início da década de 1980, Míriam foi vítima de uma das demissões mais brutais que vi em minha carreira.
Éramos colegas de redação, ela na seção de Política, eu na de Economia, e éramos iniciantes.
Míriam foi demitida pelo seu chefe, Mario Sergio Conti, de uma forma inacreditável.
Mario Sergio esperou que ela fizesse a última legenda do último texto na seção. Naqueles dias, isso só acontecia por volta das 6 ou 7 horas da manhã de sábado.
Nós chegávamos exaustos aos finais de fechamento. Lembro que quando pegava o carro em direção à Veja nas quintas feiras pensava que só poderia dormir decentemente na noite de sábado.
Míriam estava fisicamente e mentalmente exaurida quando, terminada a última tarefa entre tantas, Mario Sérgio a chamou para a última conversa.
Nunca vi um jornalista tão mau caráter quanto ele. Não é à toa que ele inventou Mainardi, outro canalha fundamental, quando se tornou diretor da Veja, no começo dos anos 1990.
Alpinista social como poucos, Mário Sérgio, diretor de uma Veja ainda respeitada, fazia coisas como passar finais de semana na ilha de Roberto Marinho. Você pode imaginar o tratamento dispensado à Globo pela Veja então.
Bem, os fatos estão aí para provar que a demissão da Veja foi talvez a melhor coisa que aconteceu para Míriam. Logo depois ela ingressaria na Globo e decolaria.
Mas o artigo de hoje mostra que, de alguma forma, ela perdeu contacto com a realidade, ao virar uma estrela da Globo.
É uma patologia comum, aliás, nas redações das grandes empresas jornalísticas.
Leio colunistas defenderem o livre mercado sem saber, aparentemente, que vigora na mídia uma reserva de mercado para companhias brasileiras.
O El País está apanhando do cartel de mídia, nos dias de hoje, porque decidiu colocar no ar um bom site em português.
Leio também vociferações contra o emprego (aliás mínimo, como mostram as estatísticas do Secom) do dinheiro público para sites fora do establishment.
São feitas por jornalistas que parecem desconhecer que suas corporações foram erguidas à base de dinheiro público – empréstimos a juros maternais de bancos oficiais, perdões de dívidas mediante anúncios e outros expedientes que em outros países jamais seriam tolerados.
Os jornalistas parecem desconhecer que até o papel no qual escrevem é livre de impostos – o infame “papel imune”.
Míriam Leitão, com sua preocupação sobre a democracia, parece ignorar a história da empresa para a qual trabalha.
Como simpatizo com ela desde a demissão covarde de Mário Sérgio, dou um conselho: basta consultar o Google.
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